25.10.19

Arrebatamento dos Homens

O homem nunca se contentou em viver na superfície que lhe foi concedida. Sempre imerso na sede de prosperar, ele se submete a extremos que o colocam em risco. Me pergunto do que vale essa busca quando ela ignora limites. A vida é vulnerável demais para brincarmos com eles.
   
Era quatro de agosto de 2010. O dia terminara num pôr do sol rosado aquarela digno de retrato. Etomava Sangria com a minha mulher e conversava sobre as mudanças que vêm acontecendo em recentemente. Em março deste ano tivemos que deixar Talcahuano por causa de um terremoto que devastou a cidade e, consequentemente, nossos planos de atingir uma vida financeira estável 

Catalina fazia contraste com a pesada luz que entrava pela janela e eu me sentia grato por tê-la. Naqueles últimos meses adaptação e desapego, ela havia sido minha base sólida. 

- Quer um pouco mais de empanada? - perguntou Catalina com a voz rouca e preguiçosa de quando bebia vinho barato.
- Não... Estou bem, amor.... obrigado. - Respondi aéreo 

Naquela tarde, senti que estávamos finalmente começando a entrar no ritmo da rotina após os traumas do terremoto. Perdemos nossa casa, amigos próximos e um conforto que tomaria muito tempo para ser recuperado. Depois de décadas vivendo sem dívidas, éramos pobres novamente. Estávamos cientes da nossa condição, mas a paz finalmente viera fazer morada.  

Estirado no sofá, senti minha espinha dorsal amolecer e a visão falhar. Minha cabeça afunda no amontoado de almofadas ao passo que me vem à mente memórias infantis da época que meu pai me levava ao parque para brincar com os vizinhos. “A vida só se vive uma vez, filho”, ele repetia todas as vezes no carro enquanto íamos embora. “Dê valor aos que lhe cercam, coma com vontade e seja paciente nas tribulações”. 

Ouço Catalina ligando a televisão baixinho em sua novela preferida e levantando meus pés para apoi-a-los sobre soas coxas. Estendo o braço e chamo-a para mais perto, onde poderia aconchegar minha cabeça perto de seu ventre. Caio num sono surto e pesado, daqueles te fazem sentir que dormiu por meses.

Acordo sozinho, coberto e assustado. Meu celular tocava e já passava da meia noite. Atendo o telefone. Minha mãe, sempre preocupada, ligava para saber se Catalina e eu estávamos bem. Deixamos a casa de mi madre um mês atrás, onde comemoramos seu aniversário com muita festa para enganar o sentimento de perda. Mepai morrera de derrame no ano anterior e desde então ela se tornara desanimada, sem propósito. Pobre mãezinha, me ligava dia e noite só para ver se estava tudo bem, para preencher o vazio de cuidar de alguém 

Depois de desligar, cambaleei para o quarto, onde Catalina se revirava bruscamente. No momento em que meu joelho tocou o colchão, Catalina deu um pulo de supetão e acordou ofegante com os olhos de quem vira o diabo. 

- Deus meu, Raúl! - suspirou forte e se agarrou ao meu peito como uma criança que encontra o pai depois de um pesadelo. 
- Que te acomete, Lina? 
- Tive um pesadelo doloroso no qual senti que te perderia!   

Catalina viera tendo pesadelos e ataques de pânico desde o terremoto. Todas as noites orava para os Santos abençoarem seus sonhos e a protegessem de qualquer perturbação, mas talvez orasse baixinho demais.  

No dia seguinte, acordei uma hora mais cedo do que o despertador. 
O sol mostrava seus primeiros raios e um vento gelado assobiava baixinho pela fresta da janela do banheiro. Me aconcheguei às costas de Catalina, depois apoiei o cotovelo no travesseiro e fiquei encarando a mulher dormir. 

Notei um intenso movimento embaixo de suas pálpebras. Seus olhos iam de uma extremidade à outra rapidamente e suas narinas puxavam o ar arduamente. Pousei minha mão sobre sua testa e com os dedos afastados acariciei seus cabelos negros e graúdos. Depois fui descendo os dedos lentamente pelo seu rosto percebendo cada milímetro de sua pele. Beijo sua bochecha direita e deixo meus lábios pousarem sobre o resto da face. Lina expira devagar e esboça um sorriso infantil.    

Depois de levantar e tomar o desjejum, rumo para a mina São José, a 35 quilômetros de casa. O trabalho que consegui lá foi graças à vantajosa recomendação que meu antigo chefe fizera quando trabalhei na Marinha. Apesar do serviço ser arriscado em razão do tamanho da mina, o salário valia à pena. Era o recomeço que Lina e eu estávamos necessitávamos. 

A mina era uma das principais fontes de cobre e ouro daquela região do Chile. Naquele dia, precisei ficar um pouco mais para corrigir um erro que Sanchez havia cometido. Liguei para minha mãe avisando que faria um turno extra e voltei para o trabalho. 

Enquanto descíamos à mina, imaginei se não era uma grande ironia adquirir meu sustento trabalhando numa dimensão que pertencia aos mortos. Não que estivéssemos perto de algum cemitério, mas toda vez que eu descia, pensava na possibilidade de encontrar a qualquer momento algum tipo de inferno ou submundo.  

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz aguda e áspera de Ávalos, que avaliava com irmão os impactos da extração de ferro australiano. Enquanto isso, Zamora discutia com Lobos as medidas que o técnico do Hauchipato deveria tomar para garantir vitória no AFP PlanVital. Lobos era ex-volante da seleção Chilena e, apesar de trabalhar na mina há pouco temposempre se exaltava em calorosas discussões com Zamora. "Mala onda! Barsa! Chanta!". Algumas vezes Juan precisava intervir para apaziguar a situação para as coisas mão saírem do controle. Mas é assim que funciona quando se trabalha com mais 32 hombres dentro de uma caverna. A gente acaba agindo como homem de caverna mesmo – se é que em algum momento deixamos de ser.    
  
Descíamos para o local de extração já há uns 6oo metros de profundidade quando ouvimos um estouro ensurdecedorSenti meu corpo arrepiar e o coração bater exageradamente acelerado. Seria um terremoto? Tentei acreditar que estava vivo dentro de um dos pesadelos de Lina, que aquilo era algum tipo de devaneio ou ilusão auditiva, que em minutos ela iria acordar e me dizer que estava tudo bem. Mas os outros sentidos foram acionados quando, em questão de segundos, uma poeira pesada e escura começou a esfarelar do teto e subir do chão. Quando me dei conta da situação, ouvi o rumor dos outros mineiros. Orações desesperadas, respirações ofegantes, pedidos para manter a calma.      

Durante mais ou menos seis horas, a poeira levantada nos deixou completamente cegos. Foi uma série de acontecimentos muito intensa. Quem falasse de ver saída era considerado louco, vendo miragem. Estávamos soterrados. 

Mais tarde, depois de várias tentativas de escapatória usando as brechas de ventilação, confirmamos que a sair não era mais uma opção viável. Houve muita lamentação entre os homens da caverna, que mais pareciam agora crianças desamparadas.   

Eu não sei o que senti. Será que é possível se acostumar com a possibilidade de morrer? Eu estava estoico, inerte. Talvez a segunda chance que a vida me dera servisse para que naquele momento eu pudesse consolar os outros homens. Eu já deveria estar morto mesmo, não? 

Passadas 24 horas, milhares possibilidades haviam sido consideradas. Decidimos que não importava o que poderia acontecer, só precisávamos nos manter vivos. Para nossa magra alegria, encontramos à 50 metros de onde estávamos um abrigo que se tornou nossa casa nos dias que se seguiram.  

Não era o abrigo mais confortável do mundo, era o inferno. Cheirava a cachorro molhado, era escuro, o ar era pesado e as paredes úmidas. Não havia tapetes, almofadas, vinho, pôr do sol na janela. Não era uma casa. O único líquido que encontramos era uma água suja que tivemos de tirar  do sistema de resfriamento das máquinas de escavação. O ar parecia uma massa escura e exalávamos um odor azedo do qual não podíamos fugir. O calor no envolvia como uma sauna. 40 graus dia e noite. Era o inferno 

Comer se tornou luxo. Nas primeiras duas semanas, ficamos como mortos vivos. Parte do tempo vivos, comendo, conversando. Parte do tempo sentindo a morte nos corroer, vegetando, desaparecendo. Um humor brutalmente negativo era nossa única escapatória. 

Nos momentos em que estávamos vivos, comíamos meia bolacha, meio copo de leite e duas colheres de peixe enlatado. Isso fez com que perdêssemos em média 10 quilos cada um. Se a melancolia tomasse conta do ambiente, tentávamos evitar o desamparo conversando sobre nossos queridos e compartilhando histórias de superação.  

Em nossas conversas, Godoy nos contou que sua família não sabia de seu trabalho na mina e  Lagues, coitado, acabou admitindo que tinha penas 19 anos de idade. Ele trabalhava ilegalmente na mina para ajudar o irmão mais novo a terminar os estudos. Menino de ouro esse Lagues. Outro mineiro desabou a chorar quando contou que seria pai a qualquer momento. Pobre homem, talvez o filho nunca veria a conhecer o pai. Mas eu pensava era na minha mãe. Teria ela que conversar com Lina sobre o filho que perdera? 

Nos dividimos em pequenos grupos para monitorar qualquer irregularidade nas paredes, caso houvesse mais um desabamento ou o resgate tentasse fazer contato. Sabíamos da dificuldade de ser encontrados, mas não podíamos deixar a angústia da incerteza nos impedir de ter esperança.

E assim, tão inesperadamente quanto o desastre, ouvimos  um som vindo de cima. Eram sondas perfurando as rochas! À princípio levamos um susto, imaginando que o teto estava desabando. Godoy olhou para mim emocionado, Lagues abraçou Luiz e Zamora quase beijou Lobos de alegria. Aqueles homens tão tortos pareciam mais santos quando alegres. 

Entramos em ação. Começamos a marcar as sondas com tinta vermelha e colocar recados presos nelas. O resgate não recebeu nossas mensagem tão rápido quando imaginamos, mas alguns dias depois a primeira verbal. Nos sentimos vivos novamente, vivos por inteiro! 

O resgate fez dutos para enviar comida e mantimentos. Inicialmente, por termos passado tanto tempo ingerindo apenas calorias o suficiente para sobreviver, tivemos que ingerir soluções restauradoras à base de glicose e sopas vitamínicas, igual às que usaram para salvar os sobreviventes dos campos de concentração nazistas. Mas isso durou pouco tempo. Depois vieram barra de cereaisovo cozido, presunto e suco de laranja.  

Aos poucos, nosso refúgio também ficou mais confortável. Nos mandaram camas, pasta de dente, meias antifungo e tela para ver TV. Brincamos que agora poderíamos abrir a boca novamente para falar sem risco de os outros desmaiarem.  

Isso significou um alívio muito grande para o grupo. Estávamos todos apoiados na certeza do resgate. O que nos trouxe mais esperança, entretanto, foi ter falado com nossos familiares. Quando ouvi a voz de Lina no telefone, meus ossos dançaram, minha epiderme amoleceu e até meus pêlos do pé se arrepiaram. Era minha pequena, minha amada, minha base concreta. Ela me trazia palavras de verdadeiro conforto todas as semanas. 

- Meu bem, eu não tenho mais pesadelos! 
- Como pode, querida! Eu aqui nessa situação! 
- Devem ser os santos, eles com certeza estão me ouvindo dessa vez. Eu oro para eles te visitarem todas às noites. 
- Eles sabem o que fazem, não é, Lina... 
- É... eles sabem quando é hora de agir e mandar pesadelos embora. 
- Amo você, meu amor, amo muito mais do que nunca. 
- Eu amo você sempre mais, meu bem. 

E foi até um pouco engraçado ver como mudou a forma com que aqueles homens falavam das mulheres ao longo dos dias. Na rotina de trabalho da vida pré acidente era só reclamação e desabafo, mas agora eles pareciam adolescente apaixonados. 

Depois de 69 dias soterrados, as equipes de resgate estavam prontas para nos remover dali. Os trabalhadores usaram uma cápsula individual construída especialmente para nos retirar do abrigo que foi batizada de Fênix II.  

Foi-nos dito que no dia 13 de outubro sairíamos de lá. Oh, que festa! Nunca vi homens tão emocionados e excitados! Eles gritavam: “Chí! Chí! Chí! Lê! Lê! Lê!” repetidamente como vencedores em final de copa. Ora, se não era uma alegria superior.   

No grande dia, um a um fomos subindo pela cápsula em direção à superfície dos vivos. Pensei no arrebatamento descrito em Apocalipse. Não saíamos nós do inferno para o Céu? Talvez aquilo tudo, no fim das contas, fosse uma visão dada para servir de lição aos outros. A lição, ficaria a refletir qual era.  

Fui um dos últimos a subir. Quando chegou a minha vez, olhei para aquele abrigo apertado e fedorento como certa gratidão. Deixava para traz um velho Raúl, um Raúl que morrera duas vezes. Era como se pudesse me ver fora de mim, novamente me despedindo da morte entre acenos e risadas contidas. 

Ao subir, fui agarrado por Lina e por minha mãe. A multidão nos espremia e gritava, como uma torcida de estádio. Não vi muitos detalhes pois meus olhos estavam inundados de lágrimas que jorravam para minhas bochechas e encharcavam os ombros de quem me abraçava. 

Voltou-me à memória, as sábias palavras de meu pai: “A vida só se vive uma vez, filho. Dê valor aos que lhe cercam, coma com vontade e seja paciente nas tribulações”. Talvez essa fosse a lição, no final das contas. 





2 comentários:

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  2. Não pude conter as lagrimas. Como pode a vida ser tão preciosa e ao mesmo tempo tão vã?!

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