25.10.19

O velho e o tempo


Existia esse menino. Ele era novo e nunca tinha celebrado um aniversário. No primeiro dia de catequese, a freira perguntou quantos anos de idade o pequeno tinha e ele disse que não sabia. Por que você não sabe não sei porque não sei, nunca tive uma festa de aniversário você nunca teve uma festa de aniversário não nunca. E a freira, movida pela carga emocional que aquela resposta emitia, expressou sua compaixão inclinando a cabeça para o lado e acolhendo o menino nos braços. Era assim que a maioria dos cristãos reagia, tendo dó e somente dó, pois como pode uma criança nunca ter ganhado uma festa de aniversário.

Percebendo o menino que era um coitado, passou a chorar escondido pensando em como seria sua vida se tivesse uma festa de aniversário. Então um dia, decidiu deixar sua casa para ir mundo afora em busca de uma festa. Recolheu seus bens – alguns clipes de papel, dois carrinhos de brinquedo, um pequeno galho que pintara de roxo numa tarde vazia, um binóculo desses de R$1,99 e um bloquinho de papel – e saiu do quarto como quem vai desbravar as Américas.

De cadarços bem amarradinhos e corda presa em volta da cintura, passou pela cozinha para levar mantimento – bolachas recheadas e sucos de caixinha. Assim, equipado para sua vida autônoma, estava pronto para partir. Porém, logo após fechar a porta dos fundos, se depara com a mãe varrendo o chão. A mãe o encara de cima à baixo e indaga o que faria um menino tão ingênuo de mochila e corda. Estou atrás de um aniversário do que você está falando estou falando de comemorar um aniversário. Sua mãe fez um olhar cínico e arrancou a mochila das costas do moleque. A vida não tem a ver com festa, mas com pagar as contas e alimentar os filhos. Mas filhos ele não tinha e contas ele não pagava, será que eu não vivo ainda? E foi chorar escondido porque tudo que ele queria era uma festa de aniversário, não viver.

A mediocridade do cotidiano abafou os desejos do menino e o distraiu com ordinariedades. Nem por isso ele deixou seu caráter explorador. Passou a navegar pelos mares de casa. Folheava jornais, cheirava os cosméticos da mãe, examinava a pluralidade dos potes, contava cartelas de remédio e brincava com botões. Ouviu certo dia no noticiário que alguém havia morrido. No dia seguinte também. E em todos os outros dias. O menino pensou que a morte não deveria ser tão ruim assim, afinal, as pessoas só estavam deixando de pagar contas e alimentar filhos. Via a mãe passar a tarde afiando facas, esfregando as quinas do chão, varrendo as quinas do teto. Será que a mãe já teve algum aniversário? Mãe quantos anos você tem, uma vez o menino perguntou, muitos, ela respondeu. Talvez a mãe nunca tenha tido um aniversário, concluiu.

No final do dia, quando o pai chegava em casa, o menino ia aos pés dele pedir atenção. O pai era tão alto, mas tão alto, que vivia um tantão corcunda para caber em lugares e ouvir pessoas. O menino até tinha medo de que algum dia o pai pisasse nele sem perceber. Mas o menino queria atenção. Tentava subir em cadeiras, dar piruetas, puxar as calças do pai, mas, espera filho agora estou muito ocupado. O filho perguntou pai o que é estar ocupado e o pai respondeu quem é importante está sempre ocupado ocupado com o quê ocupado com negócios filho mas que negócios pai negócios de gente grande filho. O pai realmente deveria estar ocupado então porque ele é bem grande mesmo. Mas para quem será que ele é importante, o filho pensava, além da vovó e da mamãe. Será que quando a gente é importante para alguém essa pessoa não deixa a gente brincar com os filhos? Talvez gente muito importante não tenha aniversários.

Dia vinha, dia ia, e o menino descobria potes de creme, gavetas de cuecas e outras fontes de arte. Certo dia abriu um livro e nele viu palavras como opulência, chalaça, casmurro. Mãe, o que é casmurro não sei filho mãe você gosta de ler não tenho tempo para isso filho mas mãe por que você não compra tempo então pare de perguntas toscas filho.  

O menino foi montando seu mundo e ele era bem diferente do mundo dos coleguinhas da escola. Quando a professora perguntou quantos anos eles tinham, começaram a exclamar números orgulhosamente. O menino achou muito estranho porque ele não tinha muita coisa, muito menos anos, só alguns clipes, galhos pintados e carrinhos. Estranharam que o menino não sabia quantos anos tinha. Você deve ter uns sete anos, mas como eu tenho anos eu nunca comprei anos acho que tempo não se compra. E o diálogo terminava em olhares vagarosos como quem não quer admitir que não entendeu nada.

No Ensino Médio o professor de física falava sobre a relatividade do tempo. O tempo é relativo de quem, tempo lá tem família? Os colegas de classe riam e o professor tentava conter a risada enquanto explicava que ele passava diferente no espaço. Vou mandar minha mãe para lá então.
Um dia o menino se tornou moço e saiu de casa para trabalhar. Fez amigos, conheceu moças e juntou dinheiro. O moço se tornou homem, se casou, trabalhou mais. Tornou-se pai, alimentou filhos e pagou contas. Hoje vivo, pensava.

Poucos anos passaram e o filho mais novo aprendeu a falar. Depois de falar o filho mais novo aprendeu a fazer perguntas e ele perguntava como ninguém. Certo dia o filho mais novo chegou da escola e perguntou ao pai se ele já havia celebrado um aniversário. O pai desatou a chorar. A mãe não entendera, muito menos o filho que acabou chorando também. Daquele dia em diante o homem se tornara carrancudo, um casmurro alto e nem um pouco corcunda. Ele vivia distante e falava menos de vinte palavras por dia.

 O homem se tornou senhor e se aposentou. Os filhos não moravam mais em casa e as contas já se pagavam sozinhas. Morri, pensou. Até que no dia 26 de outubro as coisas mudaram. O senhor já havia se rendido à melancolia e decidira passar seus últimos anos entregue ao vinho. Entrou em casa sonolento. A luz estava apagada e a casa silenciosa. Quando o velho acendeu a luz, um pequeno e desafinado coral de vozes gritou: surpresa! E a desarmônica melodia dos parabéns foi cantada. O velho estava tendo sua primeira festa de aniversário aos 67 anos. Sua nora o abraçou e disse aproveita porque as coisas são eternas enquanto duram. Depois teve bolo e muitos outros abraços.
O velho gostou tanto do aniversário que decidiu fazer aniversário toda semana. Ele ainda não sabia se podia comprar mais tempo para fazer mais festa, mas pensou se as coisas eram mesmo sobre o tempo ou sobre as festas que você faz nele.

Certo dia o neto do velho foi pedir ajuda para o dever de casa de física. O neto perguntou o que é relatividade do tempo o tempo lá tem parente e o vô respondeu que sim, que o tempo é filho da vida mas espera aqui no livro diz que o tempo passa diferente em outros lugares sim eu sei meu neto ele passa diferente quando você faz festas de aniversário.
Aos 77 anos, o velho morreu. Uma pena, viveu tão pouco tempo alguns comentavam. Mas o neto não concordava o tempo é relativo relativo de quem tempo tem parente sim o tempo é filho da vida.

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