16.5.19

Alteridade Fraternal

São Paulina de camisa e paulistana de nascença, Jéssica cresceu como uma típica moleca de rua. Jogava bola descalça, abria trilhas no meio do mato e cozinhava arroz queimado em fogõezinhos feitos de tijolo quebrado.  
 Desde pequena muito sapeca, é carinhosamente lembrada pelos familiares como a mais amável e brincalhona. Um perfeito doce de gente. Até os seis anos de idade, tirar sua paciência era missão impossível,  até que teve uma irmã mais nova e as coisas mudaram um pouco.
Encomendada por Jéssica, veio ao mundo uma agente desprovida de cabelo e maldade. Era Julie, sua irmãzinha tão esperada! Mas logo a relação entre as duas se tornou um tanto ácida. 
Certa vez, quando tinha 14 anos, a irmã mais velha, orgulhosa de si e com espírito empreendedor, montou uma vendinha no fundo da casa da vó. As principais (e únicas) iguarias eram suco de maracujá tang e copinhos de pipoca salgada. Julie, como toda boa irmã mais nova, era sócia do bussiness e seu objetivo era levar a parentada, ou melhor, freguesia, ao consumo.
Após alguns combos vendidos, enquanto os parentes desfrutavam de gordas refeições, a pequena Julie, ingenuamente guiada por suas paixões carnais de glutonaria crônica e de forma nem um pouco discreta, pega o suco das mãos da mãe, e experimenta um golezinho. Jéssica, na época dentuça e de voz bastante estridente, inconformada com a traição familiar, grita palavras de baixo calão e, em ímpeto de revolta, joga o balcão das iguarias para cima, derrubando toda mercadoria aos pés dos fregueses. Depois disso, corre para se trancar no banheiro, onde o mundo não a poderia encontrar. 
Só foi possível acalmá-la em algumas horas, mas disso veio muito aprendizado. Descobriu-se que Jéssica levava seus negócios muito a sério, se a sócia não levava, isso seria interpretado como um grande desrespeito, o que causou toda indigestão emocional. Mas brigar, todo mundo briga, e depois daquilo todo mundo voltou ao normal. 
As brigas, na verdade, confirmam que um ser humano se reconhece no outro. No momento em que se nota o discrepante, se percebe quem se é. Foi assim, entre tantas outras idas e vindas, que Jéssica se percebeu como o oposto da irmã, e isso é o que chamo de alteridade fraternal. É claro que para se conhecer não é preciso inundar o chão de suco de maracujá e pipoca, mas sim aceitar as diferenças e celebrar a vida por causa delas.
 Lamentavelmente, as duas irmãs não compartilham mais o mesmo teto – a vida acontece e isso envolve casamentos. Entretanto, no feriado elas quase sempre se veem, aprendem um pouco mais sobre a outra e bastante sobre elas mesmas.  
No último dia das mães, a família se reuniu no parque do Povo, em São Paulo e as irmãs decidiram andar de patinete; lembrar dos velhos tempos. Jéssica quis inventar moda, então subiu no brinquedo cheia de trejeitos. Acabou que sua moda se tornou um tanto antiquada: caiu do trotinete e terminou com os joelhos ralados. Julie riu bastante. Não da situação em si, muito menos da irmã. Era só que aquilo era muito Jéssica. A irmã mais velha, apesar de mulher feita, madura e adulta, era ainda a mesma moleca de condomínio de sempre.

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