Felicidade nos Dedões do Pé
não me pergunte se é com a mão, pois acho que é com o dedão do pé.
como se tornou dono do boteco, ninguém sabe. alguns dizem que roubou do irmão gêmeo.
---------------------- continua.
felicidade é uma coisa engraçada.
coisa, na verdade, nem é né, já que coisa a gente consegue
pegar com a mão.
no caso da felicidade,
estimado amigo,
ela é quem pega a gente.
não me pergunte se é com a mão, pois acho que é com o dedão do pé.
felicidade é uma coisa
engraçada, de fato.
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de: um conhecido
para: o estimado amigo
Saudações, estimado amigo.
Escrevo-lhe com dor no coração e profunda angustia pois cometi grande
equivoco ao escrever Felicidade nos Dedões do Pé. Aquilo foi uma visão muito
limitada, um tropeço na minha percepção do real. Não justifico
por razão alguma, mas defendo que fui pego de jeito pelo parasita da
ignorância. Você sabe. Hoje somos uma pessoa, seis meses depois somos
outra. Quem sabe quais ideias irão prevalecer?
Ultimamente tenho
experienciado novas aventuras do cotidiano e posso dizer que
já não vejo mais a felicidade como antes. Abaixo trago meus motivos
de maneira ilustrada. Deixe o concreto de lado e boa leitura.
''antes pensava assim, que quem
estava encarregado de nos fazer feliz era puramente a felicidade.
tomar decisões seria somente
pra fazer a gente se sentir importante.
.
.
.
I. Indicativos
I.I Primeira Conjugação do
Futuro do Pretérito
a. num cenário
paralelo, nossas alegrias seriam sorteadas.
b. num cenário
paralelo, nossas alegrias seriam sorteadas pelos dados do Acaso.
c. num cenário
paralelo, nossas alegrias seriam sorteadas pelos dados do Acaso numa velha
caixa de papelão nos fundos de um boteco.
I.II Primeira Conjugação do
Presente, Alguns Gerúndios e Outros Tempos Verbais
quase desacordado, o boêmio
vai se escorando de cadeira em cadeira até chegar à mesa de apostas.
suas mãos estão sujas
de dinheiro roubado, seu rosto está irreconhecível de tanto que apanha,
seus olhos já não brilham mais pois lhe falta de fé.
fé. a única vez em que
viu algo sobre isso foi quando leu no para-choque de um
caminhão "Fé em Deus pois Ele é justo". Vira e mexe
Acaso conta no boteco como viu esse caminhão de tomate se chocar contra
um eucalipto. Furdúncio, o motorista, bebia pinga demais.
ninguém
sabe exatamente por onde andam os pés do Acaso - ele prefere
não contar o que faz fora do boteco. Beltrana, sua vizinha mais próxima,
me contou uma vez que já o vira jogando bola no campinho. será? nunca se sabe se
há verdade no que esses vizinhos de periferia dizem, eles são muito
carentes por atenção e adoram jogar conversa fora com qualquer
retardado que passa por aí. este retardado geralmente sou eu.
seu Acaso tem uma história
bem infeliz. filho de um pai que nunca conhecera e de uma mãe que só via de vez
em quando. conheceu somente seis dos nove irmãos: um gêmeo, um filho do
pedreiro da esquina, outro filho do gerente do loja de conveniências e
três que na verdade só acha que são seus
irmãos porque têm o mesmo sobrenome - da Silva Junior. a falta de criatividade que
esse povo tem é inacreditável .
o filho da puta, por assim
dizer, pelo menos tinha casa. durante a infância morou numa dessas ruas 0
com avós e móveis mofados, mas mudou-se para bem longe quando virou pai. antes
da mudança, tinha na sala dois sofás e uma TV com tocador de
fita onde assistiu bastantes vezes os mesmos filmes. na cozinha, em
frente à corroída mesa de madeira, ficava um fogão à lenha desses que a sua
vó também deve ter em casa. o fogão do pequeninho Acaso cheirava a arroz queimado e a café preto.
no banheiro era onde ficavam
guardados os remédios de hipertensão do avós e as fraldas geriátricas. os enormes rolos de papel higiênico (ou pequenos rolos de papel toalha, isso é um detalhe que, sinceramente, me tira noites de sono) estavam sempre meio molhados. deveria ser muito desconfortável se limpar com eles.
antes de mudar para bem longe,
seu Acaso levava a vida igual aos seus irmãos: empinava pipa quando não estava
jogando bola e roubava na feira quando não estava empinando pipa. cresceu
malandro, se tornou pai aos 15 e detento aos 19.
nunca quis estudar, nunca
trabalhou por mais de quatro meses no mesmo lugar. a culpa é de quem, meu
Deus?
mas foi assim que aconteceu, 'não há nada que eu pudesse ter feito', disse ele certa vez.
e era assim que Acaso da
Silva Junior levava a vida: só levando mesmo. antes dos 28, a única coisa que o
fez chorar de alegria foi sair da prisão. fora isso, só chorava para se defender. no julgamento alegou que não nunca vira o corpo da mulher jogada no Rio Pilões, mas seus olhos não mentiam tão bem quanto a sua boca.
da Silva Junior viveu de passividade por muito tempo,
ficava sozinho e não ligava pra companhia.
sua vida era levada pelo vento, aceitava tudo que acontecia.
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