14.8.18

Alegria no boteco do Silva (segunda edição, parte I)

Felicidade nos Dedões do Pé

felicidade é uma coisa engraçada.
coisa, na verdade, nem é né, já que coisa a gente consegue pegar com a mão.
no caso da felicidade,
estimado amigo,
ela é quem pega a gente.

não me pergunte se é com a mão, pois acho que é com o dedão do pé.
felicidade é uma coisa engraçada, de fato.
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de: um conhecido
para: o estimado amigo

Saudações, estimado amigo. Escrevo-lhe com dor no coração e profunda angustia pois cometi grande equivoco ao escrever Felicidade nos Dedões do Pé. Aquilo foi uma visão muito limitada, um tropeço na minha percepção do real. Não justifico por razão alguma, mas defendo que fui pego de jeito pelo parasita da ignorância. Você sabe. Hoje somos uma pessoa, seis meses depois somos outra. Quem sabe quais ideias irão prevalecer? 

Ultimamente tenho experienciado novas aventuras do cotidiano e posso dizer que já não vejo mais a felicidade como antes. Abaixo trago meus motivos de maneira ilustrada. Deixe o concreto de lado e boa leitura.   

''antes pensava assim, que quem estava encarregado de nos fazer feliz era puramente a felicidade.
tomar decisões seria somente pra fazer a gente se sentir importante.
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I. Indicativos
I.I Primeira Conjugação do Futuro do Pretérito

a. num cenário paralelo, nossas alegrias seriam sorteadas.

b. num cenário paralelo, nossas alegrias seriam sorteadas pelos dados do Acaso.

c. num cenário paralelo, nossas alegrias seriam sorteadas pelos dados do Acaso numa velha caixa de papelão nos fundos de um boteco.

I.II Primeira Conjugação do Presente, Alguns Gerúndios e Outros Tempos Verbais 

quase desacordado, o boêmio vai se escorando de cadeira em cadeira até chegar à mesa de apostas.
suas mãos estão sujas de dinheiro roubado, seu rosto está irreconhecível de tanto que apanha, seus olhos já não brilham mais pois lhe falta de fé. 

fé. a única vez em que viu algo sobre isso foi quando leu no para-choque de um caminhão "Fé em Deus pois Ele é justo". Vira e mexe Acaso conta no boteco como viu esse caminhão de tomate se chocar contra um eucalipto. Furdúncio, o motorista, bebia pinga demais.

ninguém sabe exatamente por onde andam os pés do Acaso - ele prefere não contar o que faz fora do boteco. Beltrana, sua vizinha mais próxima, me contou uma vez que já o vira jogando bola no campinho. será? nunca se sabe se há verdade no que esses vizinhos de periferia dizem, eles são muito carentes por atenção e adoram jogar conversa fora com qualquer retardado que passa por aí. este retardado geralmente sou eu.

seu Acaso tem uma história bem infeliz. filho de um pai que nunca conhecera e de uma mãe que só via de vez em quando. conheceu somente seis dos nove irmãos: um gêmeo, um filho do pedreiro da esquina, outro filho do gerente do loja de conveniências e três que na verdade só acha que são seus irmãos porque m o mesmo sobrenome - da Silva Junior. a falta de criatividade que esse povo tem é inacreditável .

o filho da puta, por assim dizer, pelo menos tinha casa. durante a infância morou numa dessas ruas 0 com avós e móveis mofados, mas mudou-se para bem longe quando virou pai. antes da mudança,  tinha na sala dois sofás e uma TV com tocador de fita onde assistiu bastantes vezes os mesmos filmes. na cozinha, em frente à corroída mesa de madeira, ficava um fogão à lenha desses que a sua vó também deve ter em casa. o fogão do pequeninho Acaso cheirava a arroz queimado e a café preto.

no banheiro era onde ficavam guardados os remédios de hipertensão do avós e as fraldas geriátricas. os enormes rolos de papel higiênico (ou pequenos rolos de papel  toalha, isso é um detalhe que, sinceramente, me tira noites de sono) estavam sempre meio molhados. deveria ser muito desconfortável se limpar com eles

antes de mudar para bem longe, seu Acaso levava a vida igual aos seus irmãos: empinava pipa quando não estava jogando bola e roubava na feira quando não estava empinando pipa. cresceu malandro, se tornou pai aos 15 e detento aos 19.

nunca quis estudar, nunca trabalhou por mais de quatro meses no mesmo lugar. a culpa é de quem, meu Deus?
mas foi assim que aconteceu, 'não há nada que eu pudesse ter feito', disse ele certa vez.

 e era assim que Acaso da Silva Junior levava a vida:  levando mesmo. antes dos 28,  a única coisa que o fez chorar de alegria foi sair da prisão. fora isso,  chorava para se defender. no julgamento alegou que não nunca vira o corpo da mulher jogada no Rio Pilões, mas seus olhos não mentiam tão bem quanto a sua boca. 

da Silva Junior viveu de passividade por muito tempo, 
ficava sozinho e não ligava pra companhia.
sua vida era levada pelo vento, aceitava tudo que acontecia.

como se tornou dono do boteco, ninguém sabe. alguns dizem que roubou do irmão gêmeo

---------------------- continua.

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